
Prezadas e Prezados,
Blog da disciplina Produção e Roteiro de Video e Televisão, do curso de Cinema e Video do Centro Univers. UNA, de BH/MG. Vamos debater casos sobre o audiovisual brasileiro. Os comentários não devem se repetir ou ao texto, trazendo observações pertinentes. Cada comentário valerá 2 pts até 15 dias após o post. Após isso, ainda serão válidos, mas valerão apenas 1 pt. São 10 pts por bimestre, não valendo após o seu encerramento. Aqui também estarão os trabalhos de classe. Fique atenta(o)!
Por Inácio Araújo - 02/11/2010
O princípio central em “Um Dia na Vida” é o de não intervenção.Trata-se de permitir que o mundo se mostre tal qual, sem a interferência do artista.
Existe aí, primeiro, o parti pris de Rossellini. Deixar que o mundo apareça, que a realidade se imponha.
Mas, como em Rossellini, o artista, por menos que interfira, é aquele que seleciona as imagens, monta, significa em última análise.
Eduardo Coutinho procura ampliar um tanto essa idéia. Já estamos então no combate, como ele mesmo definiu, ao artista romântico, ao ser de exceção, ao demiurgo.
“Um Dia na Vida” filma 19 horas de televisão ao longo de um dia. TV aberta. Importante é que se trata de um dia inteiramente comum: sem eventos excepcionais, sem fim de semana, jogos de futebol. É o que a TV nos traz que importa.
Eis aí a “coisa”.
Ela pode ser vista de muitas maneiras.
Mas Jorge Furtado chamou a atenção para algo bem importante durante o debate que aconteceu depois da sessão única.
Os programas de TV aparecem, aqui, deslocados de seu verdadeiro habitat e de sua verdadeira função. Assim como os ready mades de Duchamp, “Um Dia na Vida” é como uma bicicleta colocada num museu. Não é mais uma bicicleta.
A TV, notamos agora, faz barulho todo o tempo. É alta. Ela precisa ser alta porque a maior parte do tempo o espectador nem assiste os programas. Faz outras coisas. O ruído é que lhe faz companhia.
Então, assim como a bicicleta no museu, olhamos (e escutamos) a tudo de outra maneira, à maneira do cinema, não mais da maneira original.
Seria possível dizer, à maneira de Godard, que transformando a TV em imagem Coutinho inseriu realidade nela?
Porque uma coisa que choca, desde que acompanhamos a sucessão de programas, das 6 da manhâ à 1h da madrugada, mais ou menos, é a perfeita irrealidade da televisão.
Ela é imagem da não imagem. Ruído encobrindo as coisas. Coisas disfarçadas de coisas. Parece que ninguém na TV tem o cabelo com que nasceu. Todos são pintados. A imagem da TV não mostra isso. A do cinema, sim. Tudo é falso. Essas pessoas, vistas em pessoa, devem ser assustadoras.
O cinema enche a TV de real. Mas então nos damos conta de que a TV é um mundo de horror. Será verdade? Será essa a verdade? Será esse deslocamento uma injustiça? Eis coisas que Coutinho sequer comenta. Ele apenas mostra.
Algumas são especialmente intrigantes.
Wagner Montes, que faz um programa desses de polícia no Rio de Janeiro, exibe a cena de um rapaz que espanca uma moça, talvez namorada, numa beira de estrada. Ninguém parece se incomodar com o fato. É brutal.
Mas, pensando bem, essa câmera que está lá, fixa, acompanhando toda a cena, quem a colocou ali? Um passante? Passa alguém nesse lugar? E por que não interveio, não impediu o espancamento? Conclusão quase inevitável: eis aí mais um fake. Uma coisa. Não o real, mas uma cena ficcional que se passa por real. Uma mentira. Fora do cinema não se percebe isso. Aceita-se.
A exibição em cinema da TV (a coisa-filme exibe a TV, não programas específicos) mostra o não dito da TV, o que a imagem da TV não revela, porque nos tira do envolvimento em que mergulhamos.
Será que isso aconteceria com qualquer outro meio?
Será que, por exemplo, o mesmo aconteceria com páginas esparsas de um livro?
Outra questão levantada durante o debate diz respeito aos conteúdos da TV.
Primeiro, alguns assuntos são doentiamente recorrentes: o dinheiro, a beleza, o amor.
Existem separadamente, mas ao longo do tempo se associam naturalmente. Com dinheiro se faz tratamento de beleza (plástica, por exemplo), com beleza se consegue o amor.
Como os anúncios foram quase todos excluídos, me parece que o filme deixa de fixar algo bem importante, que é o fato de a TV ser uma máquina de vendas.
Na TV, o programa é o verdadeiro intervalo. O programa verdadeiro é o anúncio, portanto a venda, o consumo, a produção.
(Pleno emprego? Os sentidos podem mudar: o que ontem era alienação hoje parece outra coisa, de repente se torna aceitável, talvez indispensável).
Isso chama outra questão: Coutinho optou por uma montagem horizontal. Ela suprime programas, claro, trechos, ela opta por filmar o canal A e não o B em tal horário. Mas, basicamente, estamos diante de um zapping acrítico, que nada comenta, que em nada intervém.
O artista é também um não artista.
Mas existem inúmeras outras possibilidades. Uma montagem temática.
A religião dos pastores ligando-se ao programa policial.
Ambos são pregadores. Ambos acontecem no transe demiúrgico dos seus apresentadores. O cara do programa policial achando que se matar os criminosos o crime estará erradicado. É a estratégia do exército brasileiro combatendo Canudos, mais ou menos. O pastor achando que precisa tirar o diabo do corpo. Será a mesma coisa?
A inocência do programa culinário pela manhã e os programas de embelezamento da tarde. Parece que a gente engorda de manhã e trata de emagrecer à tarde.
A TV que se debruça sobre si mesma na forma de fofocas sobre os próprios artistas (a vida pessoal, os casamentos e descasamentos).
À tarde, a beleza se confunde com saúde. À noitinha, com a fama.
Existem, enfim, outras formas de interpretar o material.
Todas supõem a intervenção do artista, claro, e Coutinho se recusa a isso.
Cabe a nós fazer essas montagens.
Ou outros filmes.
O filme do zapping, por exemplo: do SBT à Globo, da Globo à Bandeirantes e desta à Record, são mundos diferentes que manejamos, por vezes, são mundos que se oferecem à nossa escolha. O que ser? O que queremos ser? O que podemos ser?
A TV é uma máquina de dizer quem devemos ser.
O fim de “Tio Boomee”: as pessoas hipnotizadas, transportadas para dentro da tela, não importa o que esteja passando, não importa o que acontece ali.
Chega.
“Um Dia na Vida” é um filme-coisa alucinante, notável.
Produz o inesquecível a partir do material mais esquecível do mundo.
Seria possível conversar horas a respeito.
É, sim, Coutinho, estou de acordo com o Eduardo Escorel, é um filme, sim. E um filme raro. Uma coisa.
Este post foi sugestão do Samuel Marotta
Prezadas e Prezados, participem da experiência e coloquem a sua impressão. Mas não deixem de analisar os aspectos de mudança (ou não) que apontam o video.