segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Prezadas e Prezados, segue a visão própria e bastante interessante de Inácio Araújo sobre o filme de Eduardo Coutinho "Um Dia na Vida". Tal artigo foi dividido em três partes intitulada "O filme-coisa de Coutinho" (referência a própria referência do diretor ao filme). Aqui temos a parte dois e três, que falam especificamente da TV. A primeira parte pode ser conferida aqui, assim como o blog de Inácio Araújo. Ao final, comentem sobre as observações do blogueiro sobre a TV (já que sobre o filme, ao que parece, não terá jeito mesmo!)

Por Inácio Araújo - 02/11/2010

O princípio central em “Um Dia na Vida” é o de não intervenção.

Trata-se de permitir que o mundo se mostre tal qual, sem a interferência do artista.

Existe aí, primeiro, o parti pris de Rossellini. Deixar que o mundo apareça, que a realidade se imponha.

Mas, como em Rossellini, o artista, por menos que interfira, é aquele que seleciona as imagens, monta, significa em última análise.

Eduardo Coutinho procura ampliar um tanto essa idéia. Já estamos então no combate, como ele mesmo definiu, ao artista romântico, ao ser de exceção, ao demiurgo.

“Um Dia na Vida” filma 19 horas de televisão ao longo de um dia. TV aberta. Importante é que se trata de um dia inteiramente comum: sem eventos excepcionais, sem fim de semana, jogos de futebol. É o que a TV nos traz que importa.

Eis aí a “coisa”.

Ela pode ser vista de muitas maneiras.

Mas Jorge Furtado chamou a atenção para algo bem importante durante o debate que aconteceu depois da sessão única.

Os programas de TV aparecem, aqui, deslocados de seu verdadeiro habitat e de sua verdadeira função. Assim como os ready mades de Duchamp, “Um Dia na Vida” é como uma bicicleta colocada num museu. Não é mais uma bicicleta.

A TV, notamos agora, faz barulho todo o tempo. É alta. Ela precisa ser alta porque a maior parte do tempo o espectador nem assiste os programas. Faz outras coisas. O ruído é que lhe faz companhia.

Então, assim como a bicicleta no museu, olhamos (e escutamos) a tudo de outra maneira, à maneira do cinema, não mais da maneira original.

Seria possível dizer, à maneira de Godard, que transformando a TV em imagem Coutinho inseriu realidade nela?

Porque uma coisa que choca, desde que acompanhamos a sucessão de programas, das 6 da manhâ à 1h da madrugada, mais ou menos, é a perfeita irrealidade da televisão.

Ela é imagem da não imagem. Ruído encobrindo as coisas. Coisas disfarçadas de coisas. Parece que ninguém na TV tem o cabelo com que nasceu. Todos são pintados. A imagem da TV não mostra isso. A do cinema, sim. Tudo é falso. Essas pessoas, vistas em pessoa, devem ser assustadoras.

O cinema enche a TV de real. Mas então nos damos conta de que a TV é um mundo de horror. Será verdade? Será essa a verdade? Será esse deslocamento uma injustiça? Eis coisas que Coutinho sequer comenta. Ele apenas mostra.

Algumas são especialmente intrigantes.

Wagner Montes, que faz um programa desses de polícia no Rio de Janeiro, exibe a cena de um rapaz que espanca uma moça, talvez namorada, numa beira de estrada. Ninguém parece se incomodar com o fato. É brutal.

Mas, pensando bem, essa câmera que está lá, fixa, acompanhando toda a cena, quem a colocou ali? Um passante? Passa alguém nesse lugar? E por que não interveio, não impediu o espancamento? Conclusão quase inevitável: eis aí mais um fake. Uma coisa. Não o real, mas uma cena ficcional que se passa por real. Uma mentira. Fora do cinema não se percebe isso. Aceita-se.

A exibição em cinema da TV (a coisa-filme exibe a TV, não programas específicos) mostra o não dito da TV, o que a imagem da TV não revela, porque nos tira do envolvimento em que mergulhamos.

Será que isso aconteceria com qualquer outro meio?

Será que, por exemplo, o mesmo aconteceria com páginas esparsas de um livro?

Outra questão levantada durante o debate diz respeito aos conteúdos da TV.

Primeiro, alguns assuntos são doentiamente recorrentes: o dinheiro, a beleza, o amor.

Existem separadamente, mas ao longo do tempo se associam naturalmente. Com dinheiro se faz tratamento de beleza (plástica, por exemplo), com beleza se consegue o amor.

Como os anúncios foram quase todos excluídos, me parece que o filme deixa de fixar algo bem importante, que é o fato de a TV ser uma máquina de vendas.

Na TV, o programa é o verdadeiro intervalo. O programa verdadeiro é o anúncio, portanto a venda, o consumo, a produção.

(Pleno emprego? Os sentidos podem mudar: o que ontem era alienação hoje parece outra coisa, de repente se torna aceitável, talvez indispensável).

Isso chama outra questão: Coutinho optou por uma montagem horizontal. Ela suprime programas, claro, trechos, ela opta por filmar o canal A e não o B em tal horário. Mas, basicamente, estamos diante de um zapping acrítico, que nada comenta, que em nada intervém.

O artista é também um não artista.

Mas existem inúmeras outras possibilidades. Uma montagem temática.

A religião dos pastores ligando-se ao programa policial.
Ambos são pregadores. Ambos acontecem no transe demiúrgico dos seus apresentadores. O cara do programa policial achando que se matar os criminosos o crime estará erradicado. É a estratégia do exército brasileiro combatendo Canudos, mais ou menos. O pastor achando que precisa tirar o diabo do corpo. Será a mesma coisa?

A inocência do programa culinário pela manhã e os programas de embelezamento da tarde. Parece que a gente engorda de manhã e trata de emagrecer à tarde.

A TV que se debruça sobre si mesma na forma de fofocas sobre os próprios artistas (a vida pessoal, os casamentos e descasamentos).

À tarde, a beleza se confunde com saúde. À noitinha, com a fama.

Existem, enfim, outras formas de interpretar o material.

Todas supõem a intervenção do artista, claro, e Coutinho se recusa a isso.

Cabe a nós fazer essas montagens.

Ou outros filmes.

O filme do zapping, por exemplo: do SBT à Globo, da Globo à Bandeirantes e desta à Record, são mundos diferentes que manejamos, por vezes, são mundos que se oferecem à nossa escolha. O que ser? O que queremos ser? O que podemos ser?

A TV é uma máquina de dizer quem devemos ser.

O fim de “Tio Boomee”: as pessoas hipnotizadas, transportadas para dentro da tela, não importa o que esteja passando, não importa o que acontece ali.

Chega.

“Um Dia na Vida” é um filme-coisa alucinante, notável.

Produz o inesquecível a partir do material mais esquecível do mundo.

Seria possível conversar horas a respeito.

É, sim, Coutinho, estou de acordo com o Eduardo Escorel, é um filme, sim. E um filme raro. Uma coisa.

Este post foi sugestão do Samuel Marotta

18 comentários:

  1. Vinícius Coelho Perpétuo11 de novembro de 2010 às 09:38

    Juro que li esse post enorme duas vezes pra tentar dizer alguma coisa a respeito. Mas sinceramente, não consigo emitir uma opinião. Não entendi praticamente nada. Confuso demais pra mim!! Talvez se eu tivesse assistido o tal documentário do Coutinho, entenderia melhor essa mistura doida (de TV com cinema com realidade com filme-coisa com coisa-filme com artista com não-artista, etc) da qual Inácio Araujo está falando. Mas como não vi e nem tenho interesse em ver, realmente não dá pra estabelecer meu ponto de vista.

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  2. KKKKKKKKKKK!!
    Estou me divertindo aqui!
    Pra mim, esse foi o melhor post do blog.

    Quase não entendi os outros, e tive que me basear em outros comentários para poder comentar. Já este, faz total sentido para mim.

    O universo televisivo, onde tudo que é produzido é perdido, e sustenta (produz, comunica e distribui) aquilo que, na verdade o sustenta (financia), ou em outras palavras:
    O conteúdo da programação da TV, nada diz, nada muda, nada se aproveita, mas destrai e enfraquece o público, que inerte, é bombardeado por mensagens comerciais, em pontos psicologicamente frágeis, e absorve a propaganda com a mesma intensidade, que a notícia do jornal nacional, porém, repetidas vezes.

    A inserção, ou, em liguagem publicitária, veiculação, de determinado comercial na programação da TV é que será devidamente "tarifada" (centenas de milhares de reais a cada 30 segundos) e fundamentará todo o ciclo que se repete.

    Tal propaganda é tão, ou mais real, quanto os "acontecimentos" da grade habitual do canal (novelas, fofocas, pastores, policiais, filmes, desenhos, jornais), mas raras vezes, são observadas pela população brasileira, que continua inerte e frágil, perante a TV e à propaganda que recebe sem opção, ou mesmo, tendência à rejeição.

    Rodrigo Firmo Emediato
    8º PP - Manhã

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  3. com a confusão do tidir me limitei em apenas ler o post (muito legal por sinal), porem nao vi os documentarios do coutinho....

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  4. A respeito do “falso”... a TV mostra aquilo que o espectador, cansado de rua rotina chata,quer ver. O cinema é mais egoísta. Ele mostra o que quer, goste o espectador ou não, e quem quiser ver que vá... pois você não vai chegar em casa e ligar um aparelho eletrônico, sendo assim “obrigado a ver”. O cinema te deixa escolher se você quer ver ou não. Sendo desta maneira, a beleza na TV é muito valorizada. Ninguém quer chegar em casa e ver gente feia, as pessoas querem “descansar” a vista, deleitar-se, querem ver uma pessoa bonita por que na TV, até esse modelo de beleza sofre, e vence, e o espectador se convence que se o personagem vence, ele também pode, pois quer sempre que a TV seja aquele amigo que te dá o ombro sobre o qual chorar e diz que as coisas vão melhorar. O espectador não quer a realidade, aquela cujo pai que espancou o filho não foi preso ou o caso do namorado que cortou em pedaços a ex ainda não foi resolvido. O espectador quer sonhar, ou melhor, quer alguém que mostre um sonho no qual deva piamente se apoiar e acreditar que tudo, como nas novelas, acabará bem. A TV é fake. E se é pra pensar... o cinema também é fake... você pode ter uma história real sendo contada, mas se alguém a interpreta, já não é real. A história sem filtros não acontece. Nada é transmitido sem que haja pelo menos uma distorção .

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  5. Não assisti ao documentario e achei meio confuso o texto.. fica dificil opinar -.-'

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  6. Tathiane Mendes da Costa14 de novembro de 2010 às 10:55

    Também não viu o documentário!

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  7. Tô doido pra assistir!!!!

    Sem ter assistido, mas a partir de como compreendo a TV, concordo com tudo o que o autor do texto escreveu.

    A TV faz pseudo-arte. Ela constrói uma alter-realidade totalmente na contra-mão da realidade subjetiva das pessoas, fazendo-se passar por uma realidade objetiva.
    A TV é uma máquina imutável de moldar.

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  8. Também não vi o documentário, mas do pouco que entendi (também achei o texto confuso) concordei com algumas coisas.
    Gostei, principalmente da parte em que ele disse que "A TV, notamos agora, faz barulho todo o tempo. É alta. Ela precisa ser alta porque a maior parte do tempo o espectador nem assiste os programas. Faz outras coisas. O ruído é que lhe faz companhia." e é verdade. Principalmente a TV brasileira, que veio do rádio, muitas vezes (ou sempre) nem precisamos assistí-la, basta ouvi-la e já bastará.

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  9. Marcela Moreira Carvalho17 de novembro de 2010 às 09:22

    Nem tem como ver o documentário, né? Foi única exibição. Alguém sabe se depois ele vai ser disponilizado de alguma forma?

    Não existe essa história de filmar o real tal qual ele se mostra, sem interferência do artista, isso já é discutido por Coutinho há anos, e ele próprio já cansou de afirmar que não é possível.

    O filme, então, deve ser mesmo nesse sentido de provocação da qualidade do que é apresentado pela televisão brasileira. Isso é a cara do Coutinho, né, sempre levantando questionamentos interessantes sobre o audiovisual em geral.

    Ele só explicita o que todo mundo sabe.. o conteúdo da tv brasileira é um lixo. Mas é a grande maioria assiste.

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  10. Não vi o documentário, então fica dificil opinar.

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  11. Entendo a angústia de todos pelo fato de não terem assistido ao filme. ninguém viu. somente algumas pessoas convidadas por coutinho para uma única exibição. e creio que assim será. este é o filme em que somente a experiência da sala de cinema é válida. não adianta ver no conforto do seu sofá, embora esta experiência se dê a partir da montagem do controle remoto. com ele você monta. quem tem o hábito de ver TV faz um filme desse a cada empreitada televisiva. essa é a questão: ninguém viu, mas pouco importa, ele é feito constantemente, por todos.

    e sim, marcela, coutinho sempre levanta questionamentos interessantíssimos sobre o cinema e sua relação com o mundo.

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  12. Matheus Pereira Santos23 de novembro de 2010 às 19:01

    Eu odeio posições extremistas sobre qualquer meio. Dizer que a TV ou o cinema é isso ou aquilo limita o pensamento para um posicionamento situado em dois pólos apenas, sem meio termo. São notáveis as considerações do autor sobre a TV que explicita, mas não acho que ela seja apenas isso. Particularmente acredito que haja muito da TV no cinema e do cinema na TV. Os avanços na narrativa seriada televisiva, por exemplo, são provas de que há lugar para o pensamento dentro dela, mesmo estando imersa em uma lógica comercial. Fico pensando então quem se atreveria fazer esta mesma experiência que Coutinho fez em uma sala de exibição de um blockbuster, por exemplo, que carrega o mesmo peso temático desta TV que o autor tanto critica. O otimisimo exarcebado em relação ao cinema alimenta o insistente pessimismo em relação a TV resultam em comparações que não são feitas em posto de igualdade, pois, ao meu ver, há cinemas e cinemas assim com há televisões e televisões, e o julgamento crítico do receptor deve ser levado em conta.

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  13. Não vi, então me limito a opinar sobre.

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  14. Sou mais um que não viu (e provavelmente não verei) então prefiro não opinar.

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  15. Acho que não dá para "mostrar o mundo o tal qual é", sem uma interferência do artista, pois qualquer produto midiático carrega consigo, se não uma intenção ou visão do artista produzindo-o, que pode não ter interesse algum investido naquilo, ao menos o seu modo produção: seleção, edição, montagem.
    Mesmo um "filme-coisa" ainda é um "filme-coisa de alguém".

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  16. Bem, eu também não vi o documentário e por isso não tenho muita coisa a dizer. Em relação a essas críticas do autor eu concordo com o Matheus, acho que qualquer posição radical sobre um ponto de vista em qualquer meio não é algo que leve uma compreenssão total da coisa a ser estudade e discutida. O cinema marginal, esperimental, alguns blockbusthers e até mesmo televisão são muito válidos no que diz respeito a seu público alvo, seja ele o grande públido(cultura de massa) seja ele um público intelectual.

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